O Programa Mundial de Alimentos da Organização das Nações Unidas, vencedor do Prêmio Nobel da Paz 2020, contou com trabalho de jaboticabalense Prof. Luiz Carlos Beduschi Filho. Desde 2016, o engenheiro agrônomo trabalha como oficial de políticas de desenvolvimento rural no escritório regional para a América Latina e Caribe. Beduschi é professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, em São Paulo, e já mediou encontros improváveis, como o de governantes da Colômbia e membros das FARC.

Confira, abaixo e na íntegra, a matéria do Jornal da USP.

Experiências de um uspiano na ONU: “Onde há conflito, aumenta a fome”

Professor da EACH integra a agência das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, local onde nasceu o Programa Mundial de Alimentos, vencedor do Nobel da Paz 2020

Tabita Said

No começo de outubro, a organização do prêmio Nobel da Paz divulgou o vencedor de 2020: o Programa Mundial de Alimentos da Organização das Nações Unidas (ONU). O programa, que atende 90 milhões de pessoas por ano em mais de 80 países, nasceu na Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês para Food and Agriculture Organization). Na missão de combate à fome, a FAO conta com o trabalho de profissionais de diferentes países, entre eles está o professor da USP Luiz Carlos Beduschi Filho.

Desde 2016, o engenheiro agrônomo trabalha como oficial de políticas de desenvolvimento rural no escritório regional para a América Latina e Caribe. Beduschi é professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, em São Paulo, e já mediou encontros improváveis, como o de governantes da Colômbia e membros das FARC.

Para ele, o reconhecimento do Nobel da Paz ao tema da fome é um alerta à reflexão, uma vez que “a situação política de vários países não é a mais propícia para encontrar acordos de colaboração que permitiriam sair melhor da atual crise econômica.”

Criticado desde antes da pandemia, o modelo de cooperação entre países também foi legitimado pelo prêmio, que salientou a necessidade de solidariedade internacional.

“O sistema Nações Unidas recebendo esse prêmio, por um lado, dá um fôlego para continuarmos trabalhando no âmbito multilateral, que vinha sendo questionado. E, por outro lado, reconhece a importância do combate à fome para a construção de um mundo de paz. A fome extrema causa conflitos e, onde há conflito, aumenta a fome. Onde há guerras, conflitos armados ou onde as condições de violência são muito intensas, as pessoas acabam saindo, fugindo, e isso gera queda na produção, precariedade, vulnerabilidade”, afirma.

Luiz CArlos Beduschi Filho - EACH e FAO/ONU. FOTO: Secretaría de la Integración Social Centroamericana
Luiz Carlos Beduschi Filho – Foto: Secretaría de la Integración Social Centroamericana (SISCA)

Mapa da fome

Neste 16 de outubro, Dia Mundial da Alimentação, a FAO completa 75 anos de existência, em um contexto de preocupação com a insegurança alimentar.

De acordo com o Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional da agência, a interrupção parcial ou total de acesso aos alimentos afeta 187 milhões de pessoas na América Latina e Caribe, e acentua ainda mais a desigualdade de gênero: quase 55 milhões de homens não têm acesso a alimentos, enquanto entre as mulheres o número sobe para 69 milhões. Em contrapartida, para cada pessoa que sofre de fome na região, mais de seis têm sobrepeso ou obesidade.

“Não é uma questão só de produção de alimentos,  específica da agricultura. Combater e erradicar a fome é algo importante para construir uma sociedade mais igualitária e sustentável”, afirma Beduschi. Ele lembra que o Brasil tem uma trajetória importante ao investigar a questão da fome e colocá-la no centro da agenda política.

Personagens como o geógrafo Josué de Castro, o sociólogo Betinho e o professor Ricardo Abramovay, do Instituto de Energia e Ambiente da USP, demonstraram que a fome pode não ser um problema de falta de alimentos, mas de pobreza e de falta de acesso aos recursos. “Outro ex-aluno da USP também, José Graziano da Silva, que foi ministro no Brasil e diretor global da FAO, trabalhou para estabelecer essa agenda, que é um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU até 2030.”

Tendência de Subalimentação na América Latina e Caribe

Por milhões de pessoas

Anos 2000

62,6

Anos 2013

38,4

Anos 2018

42,5

Preço do desperdício

Tanto a fome quanto a obesidade são fontes de perdas econômicas, que afetam principalmente o setor agrícola. O impacto da desnutrição na economia mundial é estimado em US$ 3,5 trilhões ao ano. Já 14% dos alimentos do mundo são desperdiçados antes mesmo de chegarem ao varejo – que, de acordo com cálculos da FAO, seriam suficientes para alimentar dois bilhões de pessoas. Na América Latina e Caribe, as contradições seguem o mesmo padrão: de um lado, em 2019, 47,7 milhões de pessoas sofreram com a fome; de outro, a região desperdiça 20% de toda a comida gerada no planeta. Em vídeo, o secretário geral das Nações Unidas, António Guterres, alertou para o agravamento da situação devido à pandemia da covid-19. De acordo com a publicação, cerca de 49 milhões de pessoas podem cair na pobreza ainda neste ano.

“É impensável, em pleno século 21, existir ainda no mundo mais de 800 milhões de pessoas passando fome. Numa sociedade de opulência, em que se produz muito mais do que se consome, é um desperdício de trabalho, energia, água e recursos naturais, em geral”, diz Beduschi. Para enfrentar essa crise, ele explica que a FAO se baseia em dois conceitos centrais: o estímulo à proteção social e a geração de trabalho e renda. Apesar de pelo menos 17 países dos 33 da região terem apostado nos auxílios e programas para garantir a sobrevivência de sua população, ainda há o desafio de adequar e estender os instrumentos de proteção social até áreas rurais.

“Então, estamos falando de uma agricultura digital, agricultura 4.0, ótimo! Mas tem que ter internet no mundo rural, estrutura. E aí, não é só o imperativo ético, de acabar com essa discrepância, mas também uma oportunidade econômica. Tem um potencial econômico adormecido no mundo rural e a grande ideia por trás é: será que a gente não pode criar sociedades rurais mais prósperas, inclusivas?”, questiona.